A meta é incêndio zero
No Xingu, povos indígenas enfrentam crise climática e reduzem drasticamente as queimadas descontroladas em seu território
Por Clara Roman, jornalista do ISA
Vídeo: Manoela Meyer/ISA
“Todos nós vamos morrer com a quentura”, afirma o cacique Yantanïpo Ikpeng, ainda que, às sete da manhã, o ar esteja fresco na aldeia Moygu, Território Indígena do Xingu (TIX).Yantanïpo, mais conhecido como Melobó, está preocupado. “A gente tem medo que os animais acabem, os frutos caiam, os peixes morram”, diz.
A preocupação levou os índios a agir e fez com que o fogo que atingiu grandes porções da Amazônia em 2019 não chegasse na terra dos Ikpeng, no Médio Xingu, estado do Mato Grosso. Desde 2010, os indígenas têm adaptado suas práticas tradicionais às mudanças do clima, e tomado medidas para prevenir que o uso que fazem do fogo não crie incêndios acidentais. “Hoje a gente tá tomando muito cuidado com o uso do fogo. Porque estava trazendo muito prejuízo, destruindo nossos recursos naturais”, explica Antenu Ikpeng, que é brigadista do PrevFogo. “A floresta é nosso mercado”. Da floresta, eles tiram alimento, ervas medicinais e os materiais de construção para as casas da aldeia.
Os indígenas sempre usaram o fogo para o plantio, no manejo de suas roças tradicionais e em outras atividades, como coletar materiais para construção das casas e em suas pescarias. Mas nos últimos anos, eles começaram a perceber uma mudança na mata. Antes úmida, tornou-se seca e inflamável, fazendo com que o fogo saia de controle. Após um grande incêndio em 2010, eles resolveram alterar algumas de suas práticas.
Com o apoio do ISA, as comunidades encamparam o projeto “Manejo do Fogo”, que trabalha com o manejo de fogo juntos aos povos do Médio, Baixo e Alto Xingu, dentro do TIX. Em 2015, esse trabalho se intensificou com aporte do Fundo Nacional sobre Mudanças do Clima. Além de articulações com o PrevFogo, e ações transversais em todo o território, a equipe do ISA atuou diretamente com ações no chão, construção de acordos comunitários em aldeias dos povos Ikpeng, Kawaiwete, Yudja, Trumai, Wauja e Matipu. Em todos esse lugares, houve redução do número dos focos de calor nos últimos anos. O projeto também trabalha com monitoramento dos focos de calor e área impactada, via informações de satélite.
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Até o século XX, todo o entorno do TIX também era floresta. Então, as árvores foram sendo derrubadas para dar lugar às plantações de soja, milho, gergelim e algodão, entre outras monoculturas. O desmatamento do entorno, aliado às mudanças climáticas globais, alterou também o ambiente dentro do território indígena, o único lugar onde sobrou floresta, e o fogo começou a perder o controle. “O sol ficou muito quente, favorecendo os incêndios. Isso a gente acredita que é uma influência causada pelos homens brancos, que desmataram a floresta”, afirma Magaró Ikpeng. “Antes, o fogo não se alastrava”, diz ela.
“O trabalho do ISA”, diz Kátia Ono, a coordenadora do projeto, “foi “colocar o dedo na ferida”. Os indígenas descobriram onde estavam os problemas e onde poderiam encontrar as soluções. A partir daí, eles foram testando outras maneiras de trabalhar com o fogo. Foi assim que surgiram novas práticas de manejo, baseadas em um arcabouço cultural acumulado e atualizado por séculos para se adaptar aos tempos de agora.
“Demorou quatro, cinco anos para gente convencer os mais velhos. Que principalmente ocorria incêndio nas limpezas das roças. A gente explicou para eles que não podia ser assim, porque se pegava fogo na mata a gente ia perdendo tudo, perdendo floresta”, conta Doni Ikpeng. Foi muita conversa, palestra na escola. Mas que deu resultado. “Hoje, na aldeia Moygu, a gente quer que tenha incêndio zero”, afirma.
“Hoje, na aldeia Moygu, a gente quer que tenha incêndio zero”, afirma.
Os dados confirmam os relatos. Em 2010, no Médio e Baixo Xingu, regiões alvo do projeto, cerca de 100,2 mil hectares viraram cinzas. No ano seguinte, esse número caiu para 16,5 mil ha. Em 2016, quando o Alto Xingu teve 210 mil hectares queimados, o Médio e Baixo tiveram apenas 7 mil. Em 2018, as regiões do Médio e Baixo Xingu, dentro do TIX, zerou o número de incêndios. Em 2019, mesmo com o pico de fogos em toda a Amazônia, essa parte do Xingu teve apenas 1.600 hectares queimados .
As soluções, na maior parte dos casos, vieram dos próprios indígenas. Os Ikpeng, por exemplo, mudaram a maneira de construir suas casas. Antes, os telhados eram feitos de sapê, uma palha que é um tipo de capim altamente inflamável. Trocaram por inajá, uma palmeira que também serve para os telhados, mas que não precisa ser queimada todo ano para aparecer e crescer.
O sapê, inclusive, virou um grande desafio, porque ele gosta de crescer onde pegou fogo, e acaba impedindo a recuperação da floresta. Nas imediações da aldeia Moygu, um grande sapezal cresceu em uma área atingida por queimadas. Agora, já faz ao menos cinco anos que eles conseguiram controlar focos de incêndio na zona e, onde antes só tinha sapê, a floresta está renascendo.
Nessa hora, entra em jogo o vasto conhecimento de manejo da floresta da parte dos indígenas, que plantaram pequis e mangabeiras, árvores cujas folhas, devido suas propriedades químicas, quando caem no chão, impedem o sapê de vingar. Aos poucos, outras plantas se desenvolvem
“Atualmente as pessoas estão mais conscientes para não fazer queimada. Qualquer atividade com fogo eles se preocupam, apagam”, explica Magaró. “Vocês viram aquele lugar do sapezal? Pegou fogo umas três, quatro vezes. Estava se recuperando, pegou fogo. Depois estava se recuperando de novo, pegou fogo.Tem mais sapê do que árvore. Mas lá, bem lá no fundo, eu vi que está começando a recuperar. A gente só não pode mais deixar queimar, para a natureza se recuperar”, diz ela.
“Agora que a gente conseguiu deixar a floresta sem queimar, está tudo se recuperando. Se regenerando, tá tudo bonito e a gente fica muito feliz com isso.”, diz Akuyalu Txicao.
Dia de pescaria
É dia de pescaria, dia de timbó. Em uma lagoa no meio do rio Xingu, os Ikpeng batem na água o timbó, um cipó que envenena os peixes, mas não faz mal para as pessoas. Na beira da lagoa, as famílias acampam com suas redes e preparam as fogueiras.
Quando os peixes começam a morrer e boiar na água, as mulheres entram na lagoa para buscá-los com suas redes. Os homens, com suas flechas.
Durante toda a noite, a pesca é defumada nas fogueiras — os moquéns.
Às 7 da manhã, as famílias começam a deixar o acampamento e voltar para a aldeia, levando o que restou do peixe moqueado. As crianças ajudam e vão buscar água da lagoa para apagar as fogueiras. Nem uma brasa pode restar acesa. Antigamente, os indígenas não tinham que se preocupar com isso porque a folhagem que encobre o solo, a serrapilheira, era muito úmida, e o fogo apagava sozinho. Só que, com a mudança do clima, eles passaram a se preocupar com as brasas.
“No timbó, a gente não preocupava com o fogo. Tinha certeza de que o fogo morreria ali naquele local, tinha a umidade e o fogo não penetrava nas folhas debaixo do solo. Hoje a gente preocupa muito, a gente não deixa nem um pouco de fumaça saindo. A gente sabe que deixando um pouquinho de fumaça pode ter fogo e causar incêndio florestal.”, explica Doni.
Fogo para plantar
O manejo do fogo para o plantio das roças é uma prática milenar. O fogo limpa a área da roça, garante a abertura de luz e a fertilidade para a espécie agrícola. Depois de cortar as árvores maiores e botar fogo, é hora de plantar. Após dois anos, a área é abandonada para que a floresta se regenere. E é o fogo usado na abertura da roça que garante a germinação das espécies que vão reflorestar, e que também vão atrair a caça. Isso tudo sem uma gota de agrotóxico.
Esse momento da queima é delicado para os Ikpeng. Queimar antes ou depois da hora pode colocar tudo a perder, prejudicando a alimentação de famílias durante todo o ano. Antigamente, os sinais eram claros: o ipê amarelo florava. Quando as flores caíam e as cigarras começavam a cantar, era hora de queimar a roça. Em poucos dias, eles sabiam que caíria a primeira chuva, encerrando o longo período de seca da região, e impedindo que o fogo se alastrasse.
Agora, tudo mudou, porque as primeiras chuvas começam cada vez mais tarde. “A gente via cigarra cantar, via a flor do ipê como sinal. E hoje a gente espera a primeira, segunda chuva, pra queimar com medo que fogo se alastre na mata”, explica Antenu. “Hoje se a gente queimar a roça e plantar nesse calorzão todo, a rama de mandioca não brota, a semente de melancia queima. Porque a terra tá muito quente.”
Também passaram a fazer aceiros em todas as roças. O aceiro é um longo corredor ao redor do lugar que será queimado, de onde os indígenas tiram toda a vegetação e as folhas do chão. Um lugar sem nenhum material orgânico, que impede que o fogo da roça atravesse para a mata. “Eu fiquei feliz com esse aceiro”, conta Yakuña Ikpeng, da aldeia Arayó. De um lado, a mata intocada. Do outro, uma área carbonizada, onde em breve a roça será plantada. ”Cada dono de roça faz o seu aceiro. Muitas vezes a gente se reúne, e cada um vai com a família, com a esposa, com os filhos, ou sozinho, e aí limpa, corta e rastela. Vai limpando”, explica Yakunã.
“Com conhecimento do branco a gente adotou a fala “aceiro”. Hoje você vê todas as roças que a gente queima com aceiro. Você via antigamente que os Ikpengs queimavam a roça e largava e o fogo morria lá mesmo”, explica Antenu.
Os Ikpeng também alteraram o horário de queima das roças. Antes, era sempre na hora do sol mais forte. Agora, preferem o fim de tarde. “Agora a gente tem a paciência de usar o fogo de forma correta, manejando ele. Derruba uma área e faz aceiro e queima só aquela roça. Não fica queimando, tocando fogo e deixando a roça queimar e o fogo se alastrar”, explica Akuyalu Txicao, liderança da aldeia Arayó.
“Antigamente, depois que faziam fogo com galhos de urucum, pegavam tochas ou galhos, folhas de palmeira bacaba, e iam queimando a roça. A roça queimava bem e só um pouquinho da beira e o fogo já apagava. Mas atualmente meu pai fala que o fogo está diferente. Qualquer coisa que você queima o fogo já vira um incêndio. Você queima um lixo ali, não cuida, já vira incêndio. O fogo não é mais o mesmo”, afirma Magaró.
Vocês já não destruíram o suficiente?
“Muitas vezes os não-indígenas falam para nós: porque vocês estão protegendo a floresta? Porque querem manter a floresta em pé? A gente fala: mas vocês já não destruíram o suficiente?”, questiona Magaró. Os Ikpeng foram obrigados a abandonar seu território tradicional na década de 1960, quando foram transferidos para o Parque Indígena do Xingu. A área de ocupação ancestral tornou-se pasto. “Vocês já não destruíram o nosso antigo território? Onde moravam meus antepassados, meus avós, meus bisavós? Nós fomos transferidos para o Xingu, a gente mora aqui agora, porque o nosso território original vocês destruíram”.
O cacique Melobó foi um dos que nasceu no antigo território, e teve que se mudar para o Xingu. “Nós não queimamos nem destruímos. A gente sabe proteger nosso mato”, afirma. “O governo está destruindo tudo. Ele não quer ver o mato em pé. E como vai ficar meus netos com essa política de hoje?”.
“A gente não protege a floresta só pela floresta, mas pelo futuro dos nossos filhos, dos nossos netos. A floresta é a casa deles, a comida deles, a medicina deles. Assim como vocês protegem a casa de vocês. A gente não quer mais ouvir vocês falando: porque vocês querem a floresta em pé?”, conclui Magaró.