Encontro “Amazônia Centro do Mundo” reforça união da juventude com povos indígenas e populações tradicionais como vetor de transformação

Amazônia, a floresta que pulsa em nós

Instituto Socioambiental
12 min readDec 20, 2019

Indígenas, beiradeiros, jovens europeus ativistas pelo clima e cientistas se uniram no coração da floresta, na Reserva Extrativista Rio Iriri (PA), em defesa da Amazônia e do planeta

Por Isabel Harari, jornalista do ISA
Fotos: Lilo Clareto/ISA
Vídeo: Azul Serra/ISA

Yakawilu Juruna teve que fazer um trajeto diferente para chegar na Reserva Extrativista Rio Iriri (PA), local escolhido para sediar o encontro “Amazônia Centro do Mundo”, realizado entre os dias 11 e 20 de novembro. A jovem de 18 anos, conhecida como Anita, vive na aldeia Mïratu, Terra Indígena Paquiçamba, há menos de 10 quilômetros da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

Com o barramento definitivo do rio em 2015, não se pode mais viajar de barco até a cidade de Altamira — ponto de encontro para a saída da Resex — sem passar por um sistema de transposição controlado pela Norte Energia e enfrentar o banzeiro, vento forte que dificulta a navegação. Anita, que é Juruna, ou Yudjá, povo canoeiro conhecido como “os donos do rio Xingu”, viajou de carro por uma estrada de terra.

Anuna De Wever também fez um caminho diferente. A jovem belga, de 18 anos, atravessou o Atlântico em uma viagem que durou seis semanas até a Amazônia. Ativista pelo clima e parte do movimento “Fridays For Future”, Anuna decidiu trocar uma viagem de avião de algumas horas, que emitiria uma quantidade brutal de carbono na atmosfera, por mais de 40 dias no oceano.

As duas se encontraram no coração da floresta, na Resex Rio Iriri, parte do mosaico de Áreas Protegidas da Terra do Meio. Cerca de 70 pessoas, entre indígenas, beiradeiros, jovens ativistas brasileiros e europeus e cientistas também enfrentaram viagens de barco, carros e ônibus e se juntaram a Anita e Anuna para pensar em soluções sustentáveis para o futuro da Amazônia e do planeta.

“A Amazônia é o centro do mundo. Em uma época de emergência climática, não tem como controlarmos o super aquecimento global sem a floresta. A gente está fazendo aqui um pequeno movimento que é juntar pessoas que não se encontrariam de outra maneira. Essa é a potência desse encontro. O que é comum aqui é salvar a Amazônia, para salvarmos a nós mesmos”, resumiu a jornalista e escritora Eliane Brum, uma das organizadoras do encontro.

Durante dois dias a sala de aula do pólo Manelito, sede do evento, foi tomada por conversas em inglês, português, yanomami, kayapó, russo e francês. Ali, se reuniram representantes dos povos Juruna, Xipaya, Kayapó, Xikrin e Yanomami, beiradeiros do Xingu e Tapajós, quilombolas do Pará e Amapá, jovens ativistas do Fridays For Future, Extinction Rebellion, Engajamundo e do movimento Pussy Riot, e cientistas como Antonio Nobre, Eduardo Neves e a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha.

“São outros mundos, no meio tem o mar, mas é o mesmo universo. É importante nos encontrarmos, criarmos essa união. O tempo da juventude chegou, por isso estão aqui. Vamos construir o caminho de um novo tempo. E começar aqui, a pensar, como vamos salvar a nossa terra”, resumiu o xamã Davi Kopenawa, na abertura do encontro.

Davi Kopenawa, liderança do povo Yanomami
Os xamãs Pedrinho e Miguel Yanomami abriram o evento

“Estou muito feliz por saber que existem pessoas do outro lado do mundo preocupadas com a nossa floresta e com a nossa causa”, contou Denilson Machado da Silva, da Resex Riozinho do Anfrísio. Outro jovem beiradeiro, Herlan Barbosa, da Resex Rio Xingu, complementou: “Percebi que não estamos sozinhos”.

A sala de aula do pólo manelito foi a sede do encontro. Na foto à esquerdas, os jovens Herculano Filho e Denilson Machado da Silva, da Resex Riozinho do Anfrísio

Na linha de frente

Dezenas de caminhões carregados de madeira trafegam, em plena luz do dia, na estrada entre Altamira e o porto Maribel, na beira do rio Iriri, onde os participantes subiram em voadeiras rumo à Resex. Parte do trajeto passou por um ramal que corta a Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca do Iriri, a campeã de desmatamento em 2019. Ali, quase 7 mil hectares foram desmatados entre janeiro e outubro, 70% a mais da taxa total de desmatamento de 2018.

A TI, no entanto, não é um caso isolado. As TIs e Unidades de Conservação que compõe o Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental, um conjunto de Áreas Protegidas na bacia do Xingu, estão ameaçadas.

O Xingu concentrou as cinco Terras Indígenas mais desmatadas em 2019 e a Unidade de Conservação campeã de destruição, a APA Triunfo do Xingu, que teve 44 mil hectares desmatados neste ano. Grilagem de terras, garimpo, roubo de madeira, grandes obras de infraestrutura e avanço da agropecuária colocam em risco o território e os povos indígenas e populações tradicionais que ali vivem.

Nos últimos dez anos 1,2 milhões de hectares foram desmatados na bacia do Xingu. Da destruição de 40% das nascentes do Xingu, na região das cabeceiras do rio, no Mato Grosso, ao barramento do rio para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, próximo à foz, no Pará, a pressão sobre a floresta, os rios e seus afluentes coloca em risco uma das regiões mais diversas do mundo.

“Não sabemos como vai ser o nosso futuro, mas não vamos recuar. Somos habitantes de nossa terra, nossa mata. Não vamos ficar de cabeça baixa, não vamos parar de lutar. Vamos seguir resistindo. A luta não termina aqui. Essa briga é para sempre”, reiterou o cacique Mobo Odo Arara, da aldeia Cachoeira Seca, que leva o mesmo nome da TI.

O cacique Mobo Odo Arara, da Terra Indígena Cachoeira Seca do Iriri, a campeã de desmatamento

Nesta mesma região foi construída a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Com 25 ações judiciais movidas pelo Ministério Público do Pará, além de centenas de outras da Defensoria Pública da União, a hidrelétrica é um projeto de infraestrutura marcado por um desastroso número de impactos socioambientais, como falta de infraestrutura de saneamento, educação, saúde, o aumento da violência, reassentamento de comunidades tradicionais em periferias urbanas e aumento da pressão sobre Terras Indígenas e Unidades de Conservação.

“O rio está triste, seco, passando fome. Os peixes estão com dificuldade para se alimentar. O Xingu está bem triste”, comentou Anita Juruna. Frente a frente com a hidrelétrica, Anuna De Wever, do Fridays For Future, decretou: “parece uma prisão”.

Alejandra Piazzolla, do Extinction Rebellion Youth e Anuna De Wever, do Fridays For Future

A jovem indígena lembrou de outro empreendimento que ameaça seu território, a mineradora canadense Belo Sun, que pretende ser a maior mineradora a céu aberto do país apesar de inúmeras ilegalidades do processo e inviabilidade de sua instalação. Emocionada, ela afirmou que “não dá para recuar na luta. Precisamos juntar forças para não ter mais o fim do rio, o fim do rio vai ser o nosso fim”.

A jovem Yakawilu Juruna, da Terra Indígena Paquiçamba

Floresta, gente e biodiversidade

As Áreas Protegidas da bacia do Xingu se consolidaram como uma barreira à devastação e compõem um tipo de “firewall” para as florestas e povos da Amazônia. São 26 milhões de hectares com 21 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação contíguas, conectadas pelo Xingu e seus afluentes, com uma diversidade socioambiental única.

“Tem floresta onde tem indígenas e ribeirinhos. Nós somos os conhecedores da floresta, nós protegemos a floresta”, explicou Doto Takak Ire, liderança do povo Kayapó Menkrãgnoti.

Na foto à esquerda, Doto Takak Ire, Adélaïde Charlier e o xamã Miguel Yanomami

Denilson, jovem pesquisador beiradeiro, reiterou a fala de Doto e, diante dos participantes, perguntou: “Sabemos que onde tem floresta é onde moram as populações tradicionais. Como seria hoje a Amazônia e o mundo sem as populações tradicionais?”.

Gongo frito no óleo de babaçu. Foto: Naldo Lima

Uma resposta é certa: sem os indígenas e populações tradicionais a mesa de almoço não seria tão farta. Todos os dias uma variedade imensa de frutas, legumes e vegetais produzidos localmente, alimentou os participantes. Castanha, cacau, cará, batata doce, arroz, abacaxi são alguns exemplos de plantas domesticadas há pelo menos 6 mil anos. Os únicos produtos trazidos da cidade foram sal, cebola, alho e tomate. O restante foi produzido pela população da região.

Sem as pessoas, essa diversidade não existiria. “É o legado das formas de vida e do conhecimento sofisticado destas populações. A floresta é resultado de um manejo milenar dos povos da floresta”, comentou Eduardo Goés Neves, arqueólogo da Universidade de São Paulo.

Na Amazônia existem cerca de 16 mil espécies de árvores, destas, 227 são conhecidas como “hiperdominantes”, que compõem quase metade dos indivíduos na floresta. O açaí-do-amazonas e outras quatro espécies de palmeira fazem parte desse grupo que tem uma grande representatividade nos ciclos de carbono, água e nutrientes.

“Olhando o mapa da Amazônia é fácil perceber que onde tem população tradicional tem floresta. Só existe floresta porque ali tem um conhecimento tradicional e biodiversidade. É urgente criar um futuro diferente que conserve e amplie as florestas promovendo alternativas econômicas não só para os povos da floresta, mas a população em geral, considerando as centenas de produtos e os serviços que podem gerar para o mundo. Cada área de floresta derrubada são centenas de oportunidades perdidas”, alertou Marcelo Salazar, do Instituto Socioambiental (ISA), um dos organizadores do evento.

Marcelo Salazar, do ISA, com seu Aguinaldo, dona Chagas e Marlon Rodrigues, na localidade Rio Novo, Reserva Extrativista Rio Iriri

Coração do mundo

Durante sua apresentação, Antonio Nobre, cientista da Terra e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), mostra para os participantes um mapa animado do planeta com a variação de carbono extraído da atmosfera pelos diferentes ecossistemas terrestres — uma representação da chamada “produtividade primária bruta”, ou “GPP”, do inglês “Gross Primary Production”. Partindo da região equatorial, onde tem a maior concentração de energia, há uma pulsação das florestas.

Imagem mostra a variação de carbono extraído da atmosfera pelos diferentes ecossistemas terrestres em dez anos. Cada pulsação representa um ano de observação feita por satélite. Fonte: Laboratório do professor Yadvinder Mahli, Universidade de Oxford, Inglaterra

Sobre a Amazônia ocorre extraordinária condensação do vapor d’água transpirado pelas árvores. Esta condensação é promovida por uma poeira finíssima resultante da reação entre gases orgânicos emitidos pelas árvores e o oxigênio do ar, levando à formação das chuvas abundantes. A condensação do vapor deixa atrás de si um vazio no ar, diminuindo a pressão atmosférica sobre as florestas, sugando assim o ar úmido de áreas contíguas sobre o oceano azul. Assim, explica Nobre, nascem os rios voadores, que importam para o continente água doce renovada na evaporação do oceano.

“A vida na floresta atrai a água, que controla o carbono e regula o clima. A concentração de vida na região equatorial é fundamental para o clima, é o motor do planeta. Amazônia é o coração do mundo. Não é uma alegoria, é real, a Amazônia é o coração do mundo”, coloca.

Sem a floresta, o regime de chuvas pode ser radicalmente alterado. Para além dos impactos em Áreas Protegidas, a produção agropecuária será gravemente atingida.

Antonio Nobre, cientista da terra

Nobre cita o xamã Davi Kopenawa: “será que o homem branco não sabe que se acabar a floresta acaba a chuva, e sem a chuva não tem o que comer nem o que beber?”, uma questão completamente substanciada pela ciência do branco, e acrescenta: “Os cientistas não estão sendo escutados, os indígenas não estão sendo escutados. Os cientistas por 30 anos, os indígenas por 500. E então estes jovens do movimento iniciado pela Greta Thunberg chegam em bom momento para usar o conhecimento científico e indígena como vetor de despertar, para a humanidade despertar de uma maneira bastante efetiva”.

Aos participantes, Anuna reitera o compromisso de aprender e lutar ao lado dos indígenas e ribeirinhos. “Viemos aqui para mostrar nosso respeito à essas pessoas, aprender com eles. É muito importante quebrar as barreiras, muros e transpor os oceanos. É preciso que todos se unam. Estamos lutando pelo nosso futuro, mas já é o presente deles”, ressaltou.

Plantar o futuro

Cerca de 500 mil pessoas marcharam em Madrid, Espanha, local escolhido para sediar a conferência do clima, a COP 25. Em sua maioria jovens, os manifestantes pediram medidas efetivas e urgentes para controlar a crise climática antes que o planeta entre em um ponto de não retorno. Nas falas e cartazes, a palavra de ordem era “justiça climática já”.

“Não estamos falando se essa geração pode mudar o mundo. Essa geração tem que mudar o mundo. Precisamos de ação agora, temos pouco tempo, cinco, dez anos até que o sistema entre em colapso. Eu espero lutar com vocês”, assegurou Robin Ellis-Cockcroft, do movimento Extinction Rebellion Youth.

Robin, Alejandra Piazzolla e Tiana Jacout, do Extinction Rebellion

Robin foi um dos primeiros jovens a pegar um punhado de sementes nativas para restaurar uma área degradada em uma fazenda no limite entre os municípios de Altamira e Brasil Novo. Juntos, os participantes ajudaram a preparar a muvuca de sementes, uma mistura de 34 espécies nativas que em poucos anos se tornará uma floresta. [Saiba mais sobre a muvuca]

O que antes era uma área destinada para a pecuária, no sítio Abelha Cacau, vai compor uma mata tão diversa quanto os participantes do encontro. Todas as emissões do encontro foram neutralizadas com o plantio. A estimativa é que em 20 anos serão removidas da atmosfera 214 toneladas de carbono por hectare.

Participantes ajudam no preparo da muvuca de sementes e no plantio de espécies nativas
Na foto à direita, o jovem Elijah Mckenzie, do Fridays For Future, ao centro a liderança quilombola Isis Tatiane. À esquerda, a jornalista e escritora Eliane Brum

Socorro Costa e Silva, liderança do quilombo de Barcarena, no Pará, também participou do plantio e é firme em seu recado quando questionada como garantir o futuro da Amazônia: “Conviva com o povo da floresta, e vai saber o que precisa e o que tem que fazer imediatamente”.

Socorro Costa e Silva, liderança do quilombo de Barcarena, no Pará,

Altamira centro do mundo

Entre os dias 17 e 19 o grupo que estava na floresta se juntou a centenas de pessoas em Altamira. Mais de 300 pessoas, entre indígenas, ribeirinhos, agricultores, quilombolas, movimentos sociais, jovens ativistas pelo clima e cientistas se reuniram na Universidade Federal do Pará (UFPA) para firmar seu compromisso em defesa da Amazônia.

O cacique Raoni Metuktire, liderança histórica do povo Kayapó, pediu paz. “Estou aqui para defender a Amazônia e pedir que todos tenham calma, que a paz venha até nós. Venho para pedir que os não indígenas respeitem nossas matas, porque a floresta é a nossa vida. Eu não quero violência”.

“Diante da catástrofe em curso, nós, movimentos sociais e sociedade organizada, povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, cientistas e ativistas climáticos do Brasil e do Mundo vencemos muros e barreiras para unirmos nossas vozes em torno de um objetivo comum: salvar a floresta e lutar contra a extinção das vidas no planeta”, diz o manifesto lido por nove mulheres indígenas, ribeirinhas, quilombolas e representantes de movimentos sociais. [Assine o manifesto aqui e saiba mais sobre o encontro em Altamira]

Encontro em Altamira reuniu cerca de 300 pessoas que discutiram soluções sustentáveis para o futuro da Amazônia
Os xamãs Pedrinho e Miguel Yanomami caminham com os jovens Adélaïde, Anuna e Denilson
Na foto à direita, Assis Porto de Oliveira, presidente da Associação dos Moradores da Resex Rio Iriri. À esquerda, os jovens Elijah Mckenzie e Yakawilu Juruna
Grupo de jovens visita um castanhal na Resex Rio Iriri. À esquerda, Raimunda Gomes, Isis Tatiane e Yakawilu Juruna
Na foto à esquerda, Socorro Costa e Silva, seu Chico Catitu, Doto Takak Ire e Bedjai Txucarramãe. À direita, Eduardo Neves, Maurício Torres, Andre Degenszajn, Davi Kopenawa, Antonio Nobre e Miguel Yanomami
Na foto à esquerda, Davi Kopenawa entrega carta escrita pelos jovens Yanomami à juventude européia. Ao centro, Adélaïde, Josefien e Anuna.
Os participantes remaram em canoas até o castanhal na localidade Rio Novo. À direita, Andre Degenszajn e Iara Rolnik do Instituto Ibirapitanga e Tasso Azevedo
Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot, participou do encontro. Na foto à direita, a ativista posa com Marcelo Salazar, do ISA, e as jovens Anita e Adélaïde

O encontro foi realizado pela Associação dos Moradores da Resex Rio Iriri (Amoreri), Instituto Ibirapitanga, Eliane Brum e ISA

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