Guia indígena em caminhada pela trilha da Serra do Traíra durante expedição Serras Guerreiras de Tapuruquara, Terra Indígena Médio Rio Negro II (AM). Foto: Rogério Assis/ISA

‘Aqui a gente sobe a montanha e não tem medo de altura’

Instituto Socioambiental
8 min readNov 5, 2019

Por saúde e autonomia, indígenas do Médio Rio Negro levam alimentos tradicionais para a merenda escolar e roteiros de turismo de base comunitária

Por Roberto Almeida/ISA
Fotos: Rogério Assis/ISA

Merenda escolar e turismo andam juntos na conversa de Ivânia Melgueiro Baltazar, indígena Baré da comunidade Cartucho, Terra Indígena Rio Negro II (AM). Agricultora sim, com muito orgulho, ela é também coordenadora de receptivo das expedições Serras Guerreiras de Tapuruquara.

Para ela, cultivar roça tradicional e receber turistas, no final das contas, têm muito em comum. Valoriza a cultura e o alimento. Recebe turistas com autonomia e faz amigos que ajudam na defesa de seu território.

Mas tudo isso é novo, tudo é recente e vai se encaixando aos poucos no dia a dia das comunidades que ficam entre os municípios de Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. O turismo indígena de base comunitária acontece há três anos, e as entregas de produtos das roças para a merenda apenas começaram.

“Muitas coisas que vêm do branco ainda trazem doenças”, afirma Ivânia.

Coisas, ela diz, como as que estão nas prateleiras de escolas indígenas da região: arroz, macarrão e óleo de soja, além de produtos ultraprocessados como carnes enlatadas, biscoitos e refrescos em pó que contêm sal, açúcar, óleos e gorduras.

Produtos ultraprocessados são contraindicados pelo Ministério da Saúde no Guia Alimentar para a População Brasileira, disponível aqui para baixar, porque “em geral, são pobres nutricionalmente” e “podem favorecer a ocorrência de deficiências nutricionais, obesidade, doenças do coração e diabetes”.

Ivânia Melgueiro Baltazar: "As crianças gostam muito do açaí."

São coisas que trazem doenças para crianças e adultos, e a ‘Regra de Ouro’ proposta pelo ministério é clara: “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados.”

“A nossa proposta é que a própria comunidade faça a merenda. Podemos fazer entregas diárias de açaí, patauá, buriti e farinha de tapioca”, ressalta Ivânia. “E as crianças gostam muito do açaí”, completa, sorrindo.

‘As latas ficam tão velhas que enferrujam’

A comunidade Cartucho, lar de Ivânia, fica na margem esquerda do Rio Negro e a cerca de duas horas de voadeira de Santa Isabel do Rio Negro. Vivem ali em torno de 40 famílias com raiz milenar fincada na agricultura.

Suas práticas e saberes fazem parte do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, reconhecido pelo Estado brasileiro como patrimônio cultural do país.

Estão catalogadas, ao todo, mais de 300 variedades de plantas cultivadas pelos 23 povos indígenas que vivem na região há milênios, além de 32 espécies de peixes comestíveis, conforme dossiê publicado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Germano Baltazar colhe mandioca em roça na comunidade Cartucho, Terra Indígena Médio Rio Negro II (AM). Foto: Rogério Assis/ISA
À esquerda, farinha de mandioca e piranha, ao centro buriti, à direita macaxeira, banana e beiju. Fotos: Rogério Assis/ISA

Os ingredientes, o manejo tradicional, as técnicas culinárias e as receitas fazem parte do sistema e ilustram tamanha diversidade. Kuradá (beiju grosso), massoca (farinha de mandioca fina), mujeca (caldo de pimenta e peixe com goma), karibé (mingau de massa de mandioca), marapatá (beiju de caroço de umari) fazem parte de um grande glossário que dá gosto de ler.

Despensa da Escola Municipal Indígena São Tomé na comunidade Cartucho. Foto: Rogério Assis/ISA

Por isso é difícil imaginar, mas a realidade é que uma merenda na Escola Municipal Indígena São Tomé, na comunidade Cartucho, pode ser um prato de salsicha enlatada com macarrão, a quilômetros de distância da impressionante diversidade alimentar e cultural do Rio Negro.

“Quando vem a merenda industrializada, os enlatados ficam tão velhos que as latas enferrujam. Isso é o risco de uma alimentação não saudável para as crianças”, explica Sandra Gomes de Castro, presidente da Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN).

Com a força de Ivânia, de Sandra, e de muita gente, um caminho para a transformação da merenda escolar no Médio Rio Negro começa a ser trilhado em conjunto com a chegada de viajantes engajados na região.

Geração de renda com orgulho

As secretarias de Educação dos municípios de Santa Isabel do Rio Negro e de São Gabriel da Cachoeira, responsáveis pelos cardápios nas escolas municipais indígenas, deram início à compra de produtos das roças tradicionais rionegrinas com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), vinculado ao Ministério da Educação.

A lei federal 11.947/2009 obriga que Estados e municípios usem 30% do recurso do PNAE para a compra da produção da agricultura familiar em todo o país. Segundo dados de 2016 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), dos 47 municípios do Amazonas apenas 10 cumpriram a lei.

O embaraço levou o Ministério Público Federal a emitir em janeiro deste ano uma recomendação ao Governo do Estado do Amazonas e aos municípios a realizar chamadas públicas diferenciadas para compra de alimentos da agricultura familiar.

Em 2019, o processo de aquisição foi alavancado em um esforço conjunto das prefeituras em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), o Instituto Socioambiental (ISA) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), que prestaram apoio técnico a cinco grupos indígenas.

Resultado: uma entrega robusta de 14,1 toneladas de produtos. A renda obtida pelos grupos somou, até agora, R$ 124,1 mil, parte reinvestida para compra de equipamentos para facilitar a entrega, como uma motocicleta com caçamba.

Isso sem falar no orgulho de ver as crianças bem alimentadas com farinha de mandioca, goma, beiju, açaí, abacaxi, banana, bacaba, buriti, tucumã, macaxeira, laranja, limão, abóbora, pepino, mamão, abacate, peixes e galinha caipira.

“Não havia esses produtos dentro da escola”, explica Sandra Gomes de Castro. “Esse é um passo fundamental. Os pais das crianças cultivam na roça, vendem para a merenda escolar e os filhos têm uma merenda garantida, de boa qualidade, saudável.”

Ivânia prepara massoca no forno da comunidade: "A nossa proposta é que a própria comunidade faça a merenda." Foto: Rogério Assis/ISA

As diretrizes do Plano de Salvaguarda do Sistema Agrícola, reconhecido como patrimônio há nove anos, apontam a merenda escolar como uma das ações prioritárias. No entanto, só agora elas estão se concretizando.

“A salvaguarda envolve ações de valorização do bem e preocupação, porque os discursos e práticas destruidoras dos patrimônios são cada vez mais evidentes”, afirma Hermano Fabrício Oliveira Guaranis e Queiroz, diretor do departamento de patrimônio imaterial do Iphan, em evento promovido pela instituição em São Paulo.

Ao mesmo tempo, as agendas positivas para valorização do patrimônio estão postas. O esforço pela merenda escolar com produtos tradicionais caminha junto com o turismo indígena de base comunitária, que une indígenas e viajantes em torno de mesas fartas com todo o potencial econômico e gastronômico da região.

Uma das viajantes do roteiro Serras Guerreiras de Tapuruquara, a nutricionista funcional Daiane Spitz, viu de perto a importância de transformar a merenda escolar.

Segundo ela, “a alimentação nas comunidades indígenas apresenta diversidade e qualidade do ponto de vista nutricional”.

“Causa espanto constatar que, com a proximidade de fontes orgânicas e frescas de frutas e vegetais, as crianças sejam expostas a alimentos ricos em conservantes e aditivos”, afirma.

“Iniciativas que estimulem o resgate e valorização da alimentação regional, orgânica e sustentável tanto para as comunidades quanto para a merenda escolar são fundamentais para a manutenção da saúde e culinária tradicional desses povos”, sustenta.

Ferramentas, manivas e frutos: cartaz de recepção aos viajantes apresenta o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. Maniaka, que quer dizer mandioca em nheengatu, é o nome do roteiro cultural das expedições Serras Guerreiras de Tapuruquara. Foto: Rogério Assis/ISA

Mais envolvimento

Do topo da Serra do Jacuruaru parece que o mundo parou. Primeiro dia de expedição Serras Guerreiras de Tapuruquara e sete viajantes de cinco Estados ensopados pela subida íngreme vão recuperando o fôlego com olhar fixo na floresta vista de cima, tapete verde que se estende da beira do Rio Negro até uma linha que sobe e desce desenhada com leveza no horizonte. Relevo do Parque Nacional Pico da Neblina.

Viajantes descansam após subida à Serra do Jacuruaru. Foto: Rogério Assis/ISA

À frente na prosa solta, Germano Baltazar põe sentido na paisagem. Liderança baré da comunidade Cartucho, ele abre os olhos de quem chega ali pela primeira vez, 202 metros acima das copas das árvores, e explica que lá embaixo as ilhas que se deitam sobre o fluxo do Rio Negro se chamam Uábada, Amado, Surara e Campo.

Em seguida, Baltazar conta o que são as Serras Guerreiras, que brotam com força da terra e criam uma sensação de que a floresta está em movimento.

De volta à comunidade, a poucos minutos de voadeira, a mesa posta sobre palha trançada de inajá e decorada com folhagens de mandioca tem fartura de peixes e frutas. Piraíba (ou filhote), surubim, aracu, pacu, piranha. Abacaxi, banana, tucumã, buriti. Pupeka, mujeca, quinhapira, pimenta jiquitaia e farinha de mandioca premiam com os produtos das roças quem topou chegar até ali — depois de um banho de rio sem igual, divertido como as crianças da comunidade.

Pupeka, ou peixe moqueado em embrulho de folhas, durante a expedição Serras Guerreiras de Tapuruquara. Foto: Rogério Assis/ISA

Os viajantes se emocionam com a receptividade e ficam encantados com a alimentação. Já teve música de boas-vindas, já fizeram novas amizades. Em troca, as comunidades envolvidas no roteiro cultural — Cartucho, Aruti e São João II — agradecem e protegem quem se abre para o novo. Ao final das visitas, as comunidades vendem produtos das roças, artesanato e cerâmica.

“As pessoas não têm mais vergonha de seus produtos. É o contrário, as pessoas agora vendem, oferecem os produtos, que são muito valorizados”, resume Sandra Gomes de Castro.

Oficinas de fabricação de cerâmica, como o forno tradicional, e cestaria, com trançados em fibra de arumã. Fotos: Rogério Assis/ISA

O roteiro Serras Guerreiras de Tapuruquara foi desenvolvido pela Associação das Comunidades Indígenas e Ribeirinhas (ACIR) em parceria com a ONG Garupa, o ISA e a Foirn. Também conta com o apoio da Funai e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Até 2018, oito expedições a cinco comunidades da Terra Indígena Médio Rio Negro II (AM) contaram com 67 viajantes de oito Estados. Impacto positivo para 495 pessoas de oito etnias, com renda total de R$ 65,6 mil para as comunidades, que investem em melhorias de infraestrutura.

Números significativos para um projeto tão recente, com desafios singulares que Jaciel Rodrigues, indígena baré e coordenador-geral da iniciativa, põe na ponta do lápis para desenhar um futuro melhor, em paralelo à entrega de produtos das roças para a merenda escolar.

“Quero que as famílias das comunidades possam reformar as escolas, comprar equipamentos e ter mais autonomia. Queremos melhorar nossa vivência do nosso jeito, esse é o diferencial”, explica ele, que também é vice-presidente da Associação das Comunidades Indígenas e Ribeirinhas (ACIR).

“Aqui a gente sobe a montanha e não tem medo de altura”, define.

Janela na Escola Municipal Indígena São Tomé, comunidade Cartucho, Terra Indígena Médio Rio Negro II. Foto: Rogério Assis/ISA

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