‘Coragem’, ‘beleza’, ‘verdade’ e outras palavras que aprendi com as Yanomami
por Letícia Leite, jornalista do ISA
‘Coragem’, ‘beleza’, ‘verdade’, respectivamente, Waitheri, Totihi e Peheti, foram as três primeiras palavras que aprendi com as Yanomami do Watorikɨ, onde aconteceu o XI Encontro de Mulheres, evento anual criado por elas para compartilhar as experiências e conhecimentos do universo feminino.
Falar em público é um ato que exige coragem em qualquer sociedade. Nesse sentido, o povo que vive na maior Terra Indígena (TI) do Brasil, a Terra Indígena Yanomami, que se estende entre Roraima e o Amazonas, desenvolveu uma ferramenta peculiar. Os Yanomami crescem aprendendo que o pátio da casa é o local onde se fala de um mundo comum, onde as verdades e as decisões precisam ser compartilhadas todas as noites por quem tem coragem.
As terapias modernas devem ter um pézinho de origem yanomami. Enquanto nós pagamos caro para que um profissional nos conduza neste difícil trabalho que é dar conta de elaborar nossas angústias, toda noite os yanomami ocupam o centro do pátio da maloca para, um a um, uma a uma, discursar para os seus, chamam a prática de Hereamu. Falam sobre o que os incomoda, o que é importante, como são capazes de entender e sentir a dor do outro. Exercem diariamente a coragem para dizer suas verdades e tomar decisões coletivas.
Watorikɨ, a casa que recebeu o encontro, está cravada aos pés de uma montanha de 327 metros, com imponência que lembra a do Pão de Açúcar. Lá moram os xapiri, espíritos sagrados acionados pelos xamãs que dançam e seguram o céu para que ele não caia, como contou o mais popular entre os xamãs yanomami, Davi Kopenawa, em seu livro “A Queda do Céu”.
Davi estava presente no encontro, mas a grande anfitriã era sua esposa Fátima Kopenawa, com quem tem seis filhos. Na primeira noite em que dormi na casa dos Yanomami, com a maloca cheia de visitas, ela foi a primeira a ocupar a arena da coragem e no centro do Watorikɨ iniciou o Hereamu.
“Eu vou falar a verdade. Vou falar sobre o cabelo das mulheres yanomami, o cabelo curto e redondinho. Nosso cabelo é bonito. Eu sempre falo isso e vou continuar falando. Quando as mulheres precisam ir para a cidade elas podem fingir ser não indígenas lá, mas quando voltam aqui tem de voltar a ser yanomami, tem de tirar a roupa e usar o cabelo curtinho”, argumentou por horas.
Watorikɨ é apenas uma das mais de 250 casas espalhadas na Terra Indígena Yanomami. Nesta casa coletiva — yano a — vivem as mulheres yanomami, de cabelos negros e lisos, arredondados na franja e na parte de trás, sem ultrapassar os ombros, como Fátima orienta que elas sigam. Todas vestem tangas vermelhas feitas de algodão e colares de miçanga colorida, trançados pelo colo.
Fátima e Davi têm suas redes atadas próximas a entrada principal da casa. Não há caciques entre os yanomami, mas xamãs, como Davi, que não é único no Watorikɨ, são figuras muito respeitadas por eles. Quando se casam, as mulheres juntam sua rede próxima à do marido e fazem um novo fogo, que marca a divisão na casa compartilhada por 147 pessoas. Um novo fogo é uma nova cozinha. Ao redor dele, uma família yanomami.
Para se casar com uma mulher, os homens precisam prestar serviço ao sogro por um tempo. Trabalho duro, roça, caça e pequenas reformas são obrigações de um candidato a genro. Um homem yanomami só pode juntar sua rede à de uma mulher yanomami se provar ao pai dela que está disposto a trabalhar por uma família. Por isso, as meninas são muito bem-vindas, inclusive para atrair força produtiva. E uma sociedade que deseja a vinda das mulheres é admirável nesses tempos.
Quando amanhece no Watorikɨ, são as mulheres que buscam a lenha necessária para um dia e uma noite de fogo. Elas têm corpos preparados para carregar um filho com a boca agarrada ao peito e um punhado de lenha nas costas, ambos sustentados por tipoias. É ao redor do fogo que elas assam o peixe fresco que pescam no igarapé e fazem o beiju, mingau e tantas outras formas milenares de alimentos baseados no manejo da mandioca.
É também ao redor do fogo iluminado que a família yanomami conversa quando cai o dia. Na primeira noite em que dormi no Watorikɨ, vi quase 30 pontos de fogo manejados simultaneamente na casa de palha. É assim toda noite, sem registros de acidentes.
Comunicação e os parentes
Fui à Terra Indígena Yanomami para conduzir uma formação em comunicação para sete jovens Yanomami. Acompanhar o encontro fazia parte da atividade prática do curso que montei junto com o jornalista Alan Azevedo e minhas colegas do ISA Marília Senlle e Lídia Montanha. O projeto busca construir soluções em comunicação para os povos indígenas a partir do novo marco regulatório da sociedade civil.
Alcida, Roseane, Vitoria, Kenedy, Juruna, Oziel e Dalissa foram indicados pela Associação Hutukara para receber este treinamento em comunicação. Ainda em Boa Vista, durante cinco dias eles aprenderam a usar os celulares para fazer fotos e vídeos, visitaram uma rádio, deram entrevista ao vivo e fizeram a cobertura da formatura do magistério Yanomami. Na sequência, seguimos juntos para o Watorikɨ onde eles realizaram a cobertura do XI Encontro das Mulheres Yanomami como atividade prática da oficina.
Ouvir Fátima na primeira noite e observar como todos a escutavam na rede, deitados, reflexivos, foi a chave de leitura para compreender que os jovens precisariam demonstrar que tem coragem para ser comunicadores. Por isso, durante o dia passei a orienta-los para que fotografassem, desenhassem e escrevessem notas sobre o que viam acontecer no encontro das mulheres para a noite contar aos seus o que viram. O gerador foi ligado para que eles apresentassem, numa tela improvisada, o registro das fotos e vídeos feitos por eles para todos que estavam no Watorikɨ. Em frente as suas imagens e para os seus, abdicavam das brincadeiras comuns entre meninos entre 16 e 20 anos e agiam como os Yanomami fazem toda as noite, falaram suas verdades com coragem. Foi bonito.
Uma pausa para falar de Ehuana
A foto de Ehuana Yanomami é a identidade do ‘Copiô, Parente’, um podcast que criamos no ISA para contar aos índios o que está acontecendo em Brasília e no país e que pode afetar suas vidas. O boletim de áudio é distribuído por whatsapp para um mailing com representantes indígenas de todos os estados. O programa é retransmitido na Rádio Nacional da Amazônia e em pontos de radiofonia em Altamira (PA) e São Gabriel da Cachoeira (AM). Eu sabia que estava indo para casa de Ehuana. Finalmente encontraria o rosto que já me é tão familiar e representa a conexão semanal com parentes que vivem em todo Brasil. Para minha surpresa, Ehuana também sabia que eu estava chegando e foi me buscar assim que o avião pousou.
- Letícia?
- Eu Ehuana. — E me abraçou forte.
Conhecia um pouco de Ehuana pela autorização de seu próprio punho para ceder sua imagem à capa do ‘Copiô, Parente’ e pelo desenho que me enviou junto com a autorização.
Conhecia um pouco mais Ehuana porque ela foi uma das responsáveis pela publicação do primeiro livro feito por mulheres yanomami e escrito todo na língua yanomae. A Hutukara Associação Yanomami está promovendo, em parceria com pesquisadores do ISA, várias publicações de pensadores yanomami sobre os mais diversos temas: xamanismo, plantas medicinais, alimentação, mitologia, história. Esse livro das mulheres trata das transformações do corpo e da vida das mulheres yanomami a partir da menstruação.
Ehuana é pesquisadora, intelectual, mãe de três filhos, separada, uma das poucas mulheres do Watorikɨ que fala e entende um pouco de português. Ela também é a mais nova artista convidada do Museu Inhotim (MG). Irá produzir, com aquarelas que chegaram no mesmo avião que eu, pinturas que serão expostas e vendidas no museu. O dinheiro volta pra comunidade por meio da associação.
Encontro de mulheres
O XI Encontro das Mulheres Yanomami durou dois dias. Começou quando as 16 mulheres convidadas da região da Missão Catrimani chegaram ao Watorikɨ. Elas, que desde 2002 promovem o encontro em suas malocas, desta vez foram as visitantes. Impecáveis, pintadas e com colares e ornamentos exuberantes, chegaram sorrindo, em fileira, caminhando direto para o pátio. Juntando-se às anfitriãs, dançaram juntas, ocupando todo o espaço, cantando, gritando, espalhando beijos, abraços e sorrisos para as convidadas. Neste momento de recepção, todo e qualquer convidado e convidada foi abraçado pelas mulheres anfitriãs.
Foi a primeira vez que o encontro aconteceu na região do Demini e foi organizado por Ehuana. Ela foi a mestre de cerimônia, pactuando com as mulheres a ordem das falas e temas, cuidava para que todas falassem e se apresentassem. O evento tratou de muitas iniciativas e espaços que as mulheres yanomami estão lutando para ocupar. Falaram da comercialização de cestaria, da vitalidade das seis línguas faladas dentro do território, do conhecimento das mulheres sobre plantas medicinais, das mulheres importantes na história yanomami e da educação tradicional. Falaram da reprodução da vida yanomami e do que ameaça suas vidas.
Um estudo recente conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), mostra que a contínua invasão ilegal de garimpeiros em seu território tem trazido graves consequências: algumas aldeias chegam a ter 92% das pessoas examinadas contaminadas por mercúrio.
“Meu nome é Sara, de Hawarixa. Eu vim falar também sobre responsabilidade de cuidar da floresta. Todas as comunidades foram avisadas sobre derrubadas de árvores de buriti, de inajá. Isto está bem. Mas lá na minha comunidade o rio está sujo por causa do garimpo. Estão trabalhando lá na ponta dele”.
Acima de tudo, falaram sobre os conhecimentos e afazeres femininos necessários para prosseguir a vida no território, como contou Leliana Yanomami ao se apresentar no encontro.
“Eu sou Leliana Yanomami, gostaria de falar da história. Como meu irmão Davi falou, a gente tem que saber da história. Nossa cultura não acaba. Eu tirei meu cabelo com dente de piranha. Eu sou Yanomami mesmo. Minha sogra me ensinou e eu não esqueci. Por isso nós estamos aqui. Quando a gente tira o caranguejo para nós Yanomami comermos, vamos lá na mata e pegamos no buraquinho, isso é nossa cultura.”
A partir desta recepção cerca de 50 mulheres ocuparam uma grande mesa dentro da maloca e falaram, sempre em yanomami. Todas tiveram algum momento de fala e as conversas e apresentações seguiram por dois dias sem que nenhum homem interrompesse a fala de uma mulher. Ao contrário, tinham também seu espaço, ouviram atentos as reclamações direcionadas a eles e contribuíram com sua experiência, quando convidados por elas a falar.
No mesmo dia deste encontro, milhares de mulheres em todo o Brasil foram às ruas para dizer #EleNão e dar voz às muitas ameaças que a candidatura de Jair Bolsonaro representa na vida das mulheres.
As mulheres do Watorikɨ não votam, tampouco as eleições foram discutidas neste encontro. Mas assim como as milhares de mulheres nas ruas, elas estavam reunidas, mostrando suas palavras fortes e construindo juntas as pactuações sobre como prosseguir.
Estavam reunidas, falando delas e para todos, dançando, sorrindo, fazendo festa. Juntas, lutando pelo direito de ser diferentes, de garantir uma educação nas línguas yanomami para seus filhos. De existir sem garimpo em seu território, à sua maneira, com seus cabelos redondinhos, como mulheres Yanomami.
Nós, mulheres, não temos outra escolha senão sobreviver juntas. É assim no Watorikɨ, casa de Ehuana, Fátima e outras 69 das mulheres Yanomami. É assim em Brasília, onde tenho a minha casa. É assim para as mulheres.