Dança, festa e luta
Na Terra Indígena Wawi (MT), Khĩsêtjê cantam e dançam até o dia amanhecer para comemorar os 20 anos da retomada de seu território tradicional
Por Isabel Harari, jornalista do ISA
Fotos: Christian Braga/ISA
Vídeo: Kamikia Kisedje e Fred Mauro/ISA
“Nunca esquecemos nossa terra. Sempre falávamos: um dia vamos voltar”. A afirmação do cacique Kuiussi Khĩsêtjê se repete diversas vezes nas falas de parentes e lideranças durante as comemorações que marcaram os 20 anos da demarcação da Terra Indígena (TI) Wawi, no leste do Mato Grosso.
Mais de duzentas pessoas se reuniram na ngo, a casa dos homens no centro da aldeia Khinkatxi, para relembrar a luta dos mais velhos pela recuperação e proteção de suas terras. Ali, lideranças Khĩsêtjê, Kawaiwete e Yudja reafirmaram sua aliança em defesa do Xingu e da Amazônia.
20 anos depois de retornarem ao seu território tradicional, as invasões e insegurança fundiária deram lugar a outros problemas, como o avanço do desmatamento e uso de agrotóxicos no entorno. Ainda que as ameaças tenham mudado, o recado é o mesmo: “vamos continuar lutando”.
Com câmeras e celulares nas mãos, os jovens escutavam atentos os relatos das lideranças. O cacique Sadea, do povo Yudja, foi firme: “Vocês estão escutando essas histórias? Vocês têm que prestar atenção para continuar a nossa luta pelo que é mais importante: a terra. Vamos cantar e dançar até o amanhecer lembrando a nossa luta”.
Luta
Ntoni Khĩsêtjê ri contando quando, ainda menino, viu um homem branco pela primeira vez. “Não parecia homem, parecia guariba! Tinha muita barba, muito pelo!”.
Era Orlando Villas Bôas, que em 1959, preocupado com o avanço das frentes de colonização no Mato Grosso, foi junto com um grupo de Yudja fazer contato com os Khĩsêtjê. Pouco depois, o povo se mudou para o Parque Indígena do Xingu (PIX) — hoje conhecido como Território Indígena do Xingu. [Saiba mais sobre o histórico do contato]
Os Khĩsêtjê viveram por décadas no PIX, mas Ntoni e muitos outros sempre voltavam para a região do Suiá Missu para coletar pequi, mangaba e outros produtos. “O Xingu é bonito, cheio de praia mas não é o que eu queria. O lugar que eu queria e que é meu é esse aqui, sempre foi. Nunca esquecemos a nossa terra”, conta o cacique Kuiussi, que liderou o movimento.
Ao longo dos anos o território tradicional dos Khĩsêtjê foi sendo tomado por fazendas de gado e pescadores, provocando desmatamento, assoreamento dos rios e violência na região. “O pessoal ficou muito preocupado. O gado vai pisar nos nossos túmulos, no cemitério dos nossos parentes, os nossos lugares sagrados vão ser gradeados, pisoteados pelo gado”, conta Yaiku Khisetje.
O sonho de voltar e a preocupação com o território ensejaram uma série de expedições pela região do Suiá Missu durante a década de 1990. Nelas, os indígenas apreenderam pescadores e invasores, a fim de pressionar o governo pelo reconhecimento de seus direitos. Em 1994 tomaram o controle do rio Wawi, um afluente do Suiá Missu, e reivindicaram o reconhecimento daquela região como Terra Indígena.
“Ouvia o governo e os deputados, governadores e senadores, todos falarem ‘essa terra não é do índio, essa terra é do branco’. Falavam isso e eu só ouvia. Sempre fomos nós que ocupamos esse território”, diz Kuiussi.
O cacique foi até Brasília e conta que recusou apertar a mão de Júlio Gaiger, então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), até que ele se comprometesse a demarcar a terra: “eu falei que só pegaria na mão quando ele desse a palavra de que faria a demarcação”.
Vitoriosos nessa empreitada, a TI Wawi foi homologada em 1998.
“Se a gente fosse um povo fraco não iríamos conseguir reconquistar nossa terra. Ia estar tudo desmatado há muito tempo”, pondera Ntoni.
Soja
Nos últimos anos os Khĩsêtjê assistiram a uma mudança brutal em seu entorno. As fazendas de gado deram lugar à soja. Apenas em Querência, município em que a TI incide, mais de 7 mil hectares foram desmatados em 2018.
Entre 2007 e 2017, a área de grãos plantada no entorno do Território Indígena do Xingu, que engloba a TI Wawi, cresceu 135%, acompanhada pelo uso de agrotóxicos, que aumentou 130% no mesmo período, segundo o IBGE/Sidra.
Em 2017, estima-se que entre 60 e 90 milhões de litros de agrotóxico foram usados na porção mato grossense da bacia do Xingu. “O branco planta com veneno e vende pra gente morrer envenenado. A terra é importante para plantar, a nossa comida não tem veneno, por isso precisamos das nossas terras demarcadas”, explica Wisio Kawaiwete.
Pequi
Após retomarem suas terras tradicionais, os Khĩsêtjê encontraram seu território degradado, consequência da invasão de fazendeiros. Uma nova luta teve início. E a solução foi encontrada em um fruto: o pequi.
A história do pequi é de transformação, tanto da paisagem quanto do processo produtivo do fruto, do beneficiamento do óleo e do reconhecimento do mercado.
Com o plantio de pequizais, os indígenas trabalharam para recuperar as áreas, produzir mais alimento para a comunidade e gerar renda sustentável. Hoje são 63 hectares restaurados e uma produção recorde de óleo de pequi.
Neste ano a Associação Indígena Khĩsêtjê (AIK) recebeu um prêmio da ONU pelo Hwin Mbe, o óleo de Pequi do Povo Khĩsêtjê do Xingu. Hoje são cinco aldeias envolvidas e 315 litros de óleo de pequi foram produzidos em 2018. [Saiba mais]
Assista ao vídeo feito pelo cineasta indígena Kamikia Kisedje, que foi a Nova York para acompanhar o prêmio
“Oferecemos algo que o branco respeita, que é o óleo de pequi. E para isso não precisamos derrubar a floresta. O pequi é uma forma de defender o nosso território, com o pequi temos força política para defender o nosso território”, comenta Winti Khĩsêtjê.
Futuro
“Vamos ter que ficar alertas, vamos lutar para ficar vivos. Estamos vivendo porque temos terra”, diz Werantxi, presidente da AIK, em um discurso direcionado aos jovens.
Mais do que uma comemoração, o aniversário de 20 anos da demarcação da TI Wawi foi um momento de reflexão sobre a importância da segurança fundiária e uma oportunidade de firmar alianças frente às ameaças aos direitos territoriais.
“Os nossos inimigos estão chegando cada dia mais perto. Ameaçam tirar tudo, acabar com as Terras Indígenas. Precisamos nos preparar nos defender disso”, disse Maiware Kawaiwete, que acompanhou a luta pela demarcação da TI Wawi.
Atenta às falas dos mais velhos, a jovem Kuyayutxi, filha do cacique Kuiussi, afirma: “Vamos proteger essa terra para as futuras gerações. Para os jovens viverem sadios, porque a floresta protege a gente”.
Logo após a plenária, jovens e velhos Kawaiwete e Yudja se juntaram aos Khĩsêtjê nos cantos, danças e brincadeiras que levantaram a poeira do pátio da aldeia. A promessa do cacique Sadea, de que dançariam até o amanhecer, se cumpriu.