Em articulação inédita, ribeirinhos atingidos pela usina Belo Monte determinam os caminhos para retornarem ao seu território
Após intensa luta por reconhecimento, Conselho Ribeirinho luta para a consolidação do território, nas margens do rio Xingu.
Por Ana De Francesco, antropóloga do ISA
Em 2015 o rio Xingu foi barrado para a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Com o alagamento de uma vasta porção do território para a construção do reservatório da usina, 300 famílias ribeirinhas que viviam nas ilhas e margens do rio foram compulsoriamente removidas de suas casas.
Realocados para o centro urbano e a zona rural da região de Altamira, muitas vezes em bairros sem nenhuma infra-estrutura urbana e distantes do rio, os ribeirinhos lutam para ter seus direitos garantidos e, principalmente, voltar para o Xingu e para a vida que tinham antes. Há dois anos, este grupo formou o Conselho Ribeirinho. Após longa batalha para serem reconhecidos como população tradicional do Xingu, com identidade profundamente ligada ao rio, os ribeirinhos agora lutam para garantir seu território tradicional.
É um processo inédito na história da construção de hidrelétricas na Amazônia: o retorno dos ribeirinhos para a beira do rio, por meio de um reassentamento dentro da área do reservatório principal da usina. É sobre essa luta e essas pessoas que a antropóloga Ana De Francesco, do ISA, escreve a seguir.
Do reconhecimento social ao território
No último dia 2 de dezembro, na cidade de Altamira (PA) o Conselho Ribeirinho completou dois anos de criação. Ao longo desse tempo o Conselho teve um papel central no reconhecimento das famílias ribeirinhas deslocadas pela Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, na defesa de seus direitos e na construção de alternativas de reparação, sobretudo no que diz respeito a seus direitos territoriais.
O ponto de partida do Conselho Ribeirinho foi a organização de um grupo de pessoas, principalmente moradores das ilhas do rio Xingu que seriam alagadas pelo reservatório da usina, a partir do ano de 2015, quando as famílias viviam a eminência de serem deslocadas de suas casas.
Para os ribeirinhos não houve um planejamento adequado do processo de deslocamento e reassentamento que garantisse condições mínimas para a continuidade de seu modo de vida. Ao contrário, prevaleceram indenizações monetárias insuficientes e reassentamentos urbanos que desconsideravam, em seu planejamento, a relação que este grupo social tinha com o rio. O resultado foi a dispersão geográfica dos grupos domésticos e a ruptura de seus arranjos econômicos.
Os estudos de impacto ambiental que antecederam a implantação da hidrelétrica, bem como os planos de mitigação destes impactos, que condicionavam sua instalação e operação, não incluíram levantamentos e cadastrados adequados para descrever as dinâmicas sociais, as redes de parentesco e vizinhança e a relação com o território que caracterizam o modo de vida ribeirinho. Os beiradeiros, moradores do beiradão, foram excluídos do mapa e dos planos de reparação.
Ao serem deslocados do beiradão, os ribeirinhos perderam os lugares habitados, onde estava inscrita sua história, perderam o território que lhes garantia uma vida de fartura articulada no entorno do rio Xingu. Consequentemente houve a dispersão das redes sociais e dos arranjos econômicos que estruturavam seu modo de vida.
Frente a um contexto de incerteza e paralisação da vida cotidiana, os ribeirinhos começaram a procurar apoio de instituições na defesa de seus direitos. Em resposta a este movimento, em junho de 2015, o Ministério Público Federal (MPF), convocou uma Inspeção Interinstitucional para verificar in loco o processo de deslocamento forçado. As primeiras reuniões dos ribeirinhos foram realizadas para organizar o roteiro desta inspeção, que tornou público o contexto de grave violações de direitos.
Após a inspeção, as reuniões não só continuaram, como cresceram em frequência e número de participantes. Inicialmente foram importantes espaços de cuidado, partilha do sofrimento e das dificuldades provocados pelo processo de deslocamento forçado. Com o tempo tornaram-se um lugar estratégico para a rearticulação das redes sociais e para a construção de uma organização coletiva que pudesse fortalecer os ribeirinhos nas relações de diálogo e negociação com o empreendedor, caracterizadas por uma profunda assimetria de poder e de acesso a informação.
Em setembro de 2016 este grupo ampliou sua rede de apoio quando a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) aceitou o convite do MPF para a elaboração de um estudo multidisciplinar que apresentasse um diagnóstico com proposições para a reparação e recomposição do modo de vida ribeirinho, cujo pressuposto era seu retorno para as margens do rio Xingu. O relatório foi lançado em uma audiência pública, no dia 11 de novembro de 2016, na cidade de Altamira, ocasião em que mais de oitocentas pessoas lotaram o auditório municipal.
Pela primeira vez os ribeirinhos falaram antes de todas as instituições presentes, narrando as trajetórias do deslocamento e suas consequências. Aquela audiência consolidou o que a professora Manuela Carneiro da Cunha, uma das coordenadoras do relatório da SBPC, chamou de “engajamento maciço” : a articulação da comunidade acadêmica entorno de problemas reais em um esforço de pesquisa colaborativa, neste caso, pesquisadores de diversas instituições e áreas de conhecimento e os ribeirinhos.
Na audiência foi enfatizada a importância da criação de um conselho legítimo de representantes dos ribeirinhos para defender seus interesses e ser interlocutor no diálogo com outros atores, identificar quem eram as famílias ribeirinhas que viviam na região e tomar decisões, fundamentadas no parentesco e vizinhança, sobre o processo de retorno para as margens do rio Xingu.
No dia 2 de dezembro de 2016 foi oficialmente criado o Conselho Ribeirinho, com representantes de todas as localidades atingidas pelo reservatório da usina, incumbido de um primeiro grande desafio: reconhecer todas as famílias ribeirinhas que haviam sido deslocadas.
O reconhecimento social das famílias ribeirinhas
O processo de reconhecimento social foi de dezembro de 2015 até o mês de março de 2017, e implicou em uma intensa mobilização das famílias e um tremendo esforço dos conselheiros. A primeira tarefa, neste sentido, foi a definição de critérios internos que permitissem identificar seus membros. O Conselho Ribeirinho estabeleceu como prioridade identificar as famílias que tinham moradia permanente no beiradão e que não foram incluídas nos programas de reassentamento da Norte Energia, por considerá-las as mais prejudicadas pelo processo de deslocamento forçado.
Dois caminhos foram adotados para reconhecer as famílias, um de caráter relacional: as pessoas identificam aqueles com quem viviam, os vizinhos e parentes; e outro de caráter mais essencialista, associado a uma identidade coletiva. Neste sentido coube aos membros do Conselho definir o que é “ser ribeirinho” e construir critérios que orientassem o reconhecimento social, assegurando a isonomia do processo e o senso de justiça dos próprios ribeirinhos. Os critérios definidos pelo Conselho foram reunidos em alguns tópicos que sintetizam características para eles centrais do modo de vida ribeirinho.
“Ribeirinho vive da mata e do rio”. Seu modo de viver é baseado em uma forte relação com os recursos do meio, que implicou no desenvolvimento de formas de uso e ocupação do território que não o degradava, ao contrário, resultou na conservação de áreas florestais em uma região de expansão da fronteira agrícola e intensa degradação ambiental.
“Ribeirinho tem história”. A importância da conexão entre história, território e conhecimento vai além de um passado partilhado, o reconhecimento implicava na manutenção de um vínculo com o território, sobretudo econômico.
“Ribeirinho trabalha em família”. Enfatiza a importância de uma organização social ancorada nos grupos domésticos, nas relações de reciprocidade, cooperação econômica e comensalidade, na qual a divisão do trabalho e as principais tomadas de decisão se dão no âmbito da família.
“Ribeirinho tem conhecimento, conhecimentos que se aprendem na convivência com o lugar”. A íntima conexão entre território e conhecimento foi descrita a partir da enumeração de uma diversidade de habilidades e modos de fazer que compõe um conjunto de saberes técnicos, ecológicos e sociais indispensáveis para viver no beiradão.
“Ribeirinho é uma mistura: é pescador, agricultor, caçador, criador, extrativista”. A dedicação a uma diversidade de atividades é uma característica importante do modo de vida ribeirinho, que garantiu a sobrevivência e permanência de grupos familiares em territórios marginais ao longo do tempo, ao mesmo tempo em que garante o uso sustentável dos recursos naturais.
Após a definição dos critérios, os representantes do Conselho Ribeirinho elaboraram a listagem das famílias. Foi um trabalho difícil, realizado com responsabilidade, mas que implicou, por sua própria natureza, em muito desgaste emocional, pois ao definir os contornos do grupo social, indicava, consequentemente, quem estava de fora. As reuniões de reconhecimento foram realizadas na Universidade Federal do Pará (UFPA) e foram acompanhadas pelo Ibama, órgão licenciador, a Defensoria Pública da União (DPU) e o MPF. Um relatório sobre o processo foi elaborado pelo Grupo de Apoio ao Conselho Ribeirinho, constituído pela UFPA, o MPF, o Instituto Socioambiental e o Movimento Xingu Vivo Para Sempre.
As narrativas dos conselheiros associavam as ideias de fartura e bem viver ao beiradão. O acesso à terra e ao rio, portanto, eram pressupostos para a continuidade de sua existência. A organização social fundada no trabalho familiar e a importância das redes de vizinhança também foram enfatizadas, pois a desestruturação das mesmas alterou os regimes locais de produção, tanto material, como simbólica. Neste sentido, o território tem uma importância fundamental: é o principal componente na constituição da identidade, fonte, registro e pressuposto do conhecimento partilhado. Sem território o conhecimento perde seu substrato material a partir do qual é atualizado e transmitido.
O Território Ribeirinho
Há três anos, desde que tiveram que sair do beiradão, o direito ao território mobilizou um grande número de pessoas. A primeira proposta territorial dos ribeirinhos,entregue ao Ibama em novembro de 2015, foi uma resposta a um primeiro mapa de aptidão de áreas para relocação de populações ribeirinhas no reservatório da UHE Belo Monte, elaborado pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU). O mapa foi recusado pelos ribeirinhos: a maioria das ilhas ficariam submersas e seus cumes também não eram adequados para ocupação por serem predominantemente rochosos. Apenas seis ilhas permaneceriam emersas com o enchimento do reservatório, todas elas habitadas por ribeirinhos ou indígenas.
Os ribeirinhos mostraram naquela reunião que, mesmo em um contexto de grandes mudanças ecológicas provocadas pelo barramento do rio Xingu, eram eles quem conheciam melhor suas dinâmicas, podendo melhor avaliar as áreas adequadas para viver, com base em seu conhecimento histórico sobre os ciclos de vazante e cheia do rio.
Em fevereiro de 2018, quase um ano após o encerramento do processo de reconhecimento social, em Seminário Técnico realizado na cidade de Brasília, o Conselho Ribeirinho apresentou um mapa das áreas minimamente necessárias para a reterritorialização das famílias. O mapa apresentado era fruto de uma construção coletiva que começou em 2015, atualizada pela proposta elaborada para o relatório da SBPC, a experiência das famílias já reassentadas e o conhecimento acumulado sobre as dinâmicas ecológicas do reservatório.
Neste seminário, o modelo de reassentamento implementado pela Norte Energia para 121 famílias nas margens do reservatório foi considerado inadequado por não garantir condições mínimas para a retomada do modo de vida tradicional. As áreas, integralmente localizadas em Áreas de Preservação Permanente (APP), eram insuficientes para a fixação das famílias ao longo do tempo, e em alguns casos inadequadas para moradia e o cultivo. As famílias foram reassentadas distantes de seus locais de origem, sem conectividade entre as áreas de uso familiar, e tampouco foram previstas áreas de uso coletivo.
Se o modelo de reassentamento proposto pela Norte Energia foi rechaçado pelo Ibama e os pesquisadores presentes, o Conselho Ribeirinho apresentou uma alternativa viável para a reterritorialização das famílias nas margens do rio, que conciliava os direitos destas famílias, a recuperação e conservação ambiental do território.
Neste seminário a proposta do Conselho Ribeirinho era a única na mesa. A Norte Energia pediu um prazo de 60 dias para apresentar uma análise de viabilidade para a implantação da proposta. Contudo, o avanço mais concreto da reunião foi a incorporação integral da lista das famílias ribeirinhas reconhecidas pelo Conselho, quando a empresa ainda pretendia avaliar, por meio de estudos de caso, se algumas daquelas famílias eram de fato ribeirinhas. A pertinência e a seriedade do processo realizado pelo Conselho Ribeirinho, levou a obrigação da Norte Energia pelo reassentamento de todas as famílias, em condições capazes de promover a recuperação e reprodução do modo de vida tradicional.
Nos meses seguintes a Norte Energia não cumpriu o prazo assumido e o Conselho Ribeirinho, dando resposta ao sentido de urgência, deu continuidade ao detalhamento de sua proposta territorial com o objetivo de subsidiar a reterritorialização e superar os entraves apontados pelo Ibama em relação a insuficiência e potencial inadequação das áreas apresentadas pela empresa.
Entre os meses de abril e maio de 2018 o Conselho Ribeirinho realizou trabalho de campo para o zoneamento dos três territórios, mapeando a diversidade de ambientes e outros elementos da paisagem relevantes para avaliar a qualidade ambiental de áreas para ocupação direta, áreas de uso comum e áreas prioritárias para recuperação e conservação ambiental.
O zoneamento do território realizado pelo Conselho Ribeirinho, com apoio técnico do ISA, resultou em um mapa detalhado e ilustrado que serviu de suporte para a discussão da proposta de retorno para as margens do rio Xingu. Foram realizadas diversas reuniões com os antigos moradores de cada localidade em que foram indicadas as áreas adequadas para moradia, os locais de interesse de cada grupo familiar e de vizinhança e locais prioritários para conservação e uso comum, como piracemas, castanhais e baixões.
Em março, em um processo inédito de reconhecimento da legitimidade do Conselho Ribeirinho e de sua proposta de território, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) publicou três Portarias de Auto de Demarcação destinando integralmente as áreas pretendidas para a reterritorialização das comunidades ribeirinhas deslocadas pela UHE Belo Monte. Os ribeirinhos, de grupo social que fora excluído do mapa, tornavam-se os principais atores na formulação de uma proposta de território embasada na construção coletiva e na combinação entre conhecimento tradicional e técnico.
A urgência para a retomada da vida no beiradão levou a criação colaborativa de uma metodologia de cartografia social, que combinava o conhecimento empírico dos beiradeiros, o conhecimento científico, o uso do georreferenciamento e de imagens de satélite. O mapa representava os elementos que eram relevantes para orientar a localização das famílias no território, bem como a futura construção dos planos e regras de uso. O mapa com ilustrações, tanto na legenda como nos ícones possibilitou que fosse amplamente lido e debatido, tornando-se uma ferramenta para a discussão e planejamento das famílias ribeirinhas.
A Norte Energia não cumpriu com nenhum prazo acordado para a apresentação de uma proposta de reassentamento viável para os ribeirinhos. Em setembro contratou uma empresa de engenharia, a Worley Parsons, para essa tarefa. A empresa avaliou a proposta já consolidada do Conselho Ribeirinho e apresentou uma contraproposta em reunião pública, que foi, em poucas horas, criticada e recusada pelos ribeirinhos.
Com base nas críticas colocadas pelos ribeirinhos, a Worley Parsons redesenhou a proposta, e desta vez se precaveu de apresentá-la em uma reunião pública. Acordou-se que seria feita uma vistoria em campo para a definição conjunta do contorno do Território Ribeirinho. Desta vistoria, realizada nos dias 22 a 26 de novembro de 2018, participaram as empresas, o Ibama e o Conselho Ribeirinho.
Os conselheiros explicaram as razões para cada elemento e premissa de sua proposta de território. Discutiu-se em campo os melhores arranjos de locais de moradia, produção agrícola e extrativismo, áreas indicadas para aquisição e até mesmo a modificação da linha de APP para acomodar melhor as famílias nas margens do rio.
Foi a própria população atingida quem definiu um plano de reparação que se mostrou a solução mais adequada do ponto de vista técnico, ambiental, e econômico. Foi o Conselho Ribeirinho quem forneceu os subsídios técnicos para a empresa formular um programa de reassentamento para as famílias ribeirinhas deslocadas, uma condicionante da Licença de Operação da UHE Belo Monte. No mês em que completa dois anos de criação, o Conselho Ribeirinho espera a consolidação da contraproposta da Norte Energia para avaliar sua viabilidade, em uma inversão inédita nos modos de tomada de decisão.
O Conselho Ribeirinho é uma experiência importante no sentido de propor mecanismos mais adequados para a formulação conjunta de políticas e programas, sejam estes destinados a reparação de danos provocados pela implantação de grandes projetos de infraestrutura, como políticas de proteção e gestão territorial e conservação ambiental.
A constituição de um Território Ribeirinho às margens do rio Xingu é uma experiência importante para a promoção dos direitos humanos, sobretudo dos povos tradicionais, associada ao reconhecimento formal dos territórios tradicionalmente ocupados.