Xingu na linha de frente contra a destruição
Reunidos na Terra Indígena Menkragnoti (PA), no 4º encontro da Rede Xingu +, ribeirinhos e indígenas firmam aliança em defesa da Amazônia
Por Isabel Harari, jornalista do ISA
Fotos: Lucas Landau/Rede Xingu +
Vídeo: Kamikia Kisedje/Rede Xingu +
Depois de ser pintada por suas avós e tias, O-é Kayapó Paiakan se dá conta que não tem um cocar. Na iminência de cair uma chuva na aldeia Kukenkobre, o que impossibilitaria a gravação de um vídeo do qual participaria, a jovem indígena pede ao seu avô, Xuakre, que empreste seu cocar para poder gravar.
Atrás de O-é, dezenas de ribeirinhos e indígenas encaram a câmera. Reunidos no 4º encontro da Rede Xingu +, eles decidiram fazer um manifesto em defesa de seu território e modos de vida. “Nós vamos seguir resistindo”, diz a jovem Kayapó. O vídeo, chamado "Uma flecha do Xingu para o mundo, pela #Amazônia", rodou o mundo.
O encontro reuniu 130 lideranças de 14 povos indígenas e populações tradicionais na Terra Indígena (TI) Menkragnoti (PA), no coração do Xingu, entre os dias 21 e 23 de agosto. Durante três dias eles discutiram estratégias para enfrentar as ameaças aos seus direitos e firmaram uma aliança pelo futuro da floresta.
As áreas protegidas (Terras Indígenas e Unidades de Conservação) da Bacia do Xingu estão na fronteira do desmatamento. Só neste ano mais de 92 mil hectares de floresta foram derrubados na região, aumentando a pressão sobre o território. As queimadas criminosas, grilagem, mineração, roubo de madeira, avanço da agropecuária e obras de infraestrutura ameaçam a integridade da floresta e seus povos.
Mais de 1.300 quilômetros separam o ribeirinho Denilson Machado da Silva e O-é Kayapó. O jovem vive na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, que leva o mesmo nome de um dos afluentes do Xingu. Sua fala faz coro ao discurso da indígena: “está na hora de mostrar que acabou essa divisão entre os indígenas e comunidades tradicionais. Somos diferentes mas há uma semelhança muito grande: vivemos da floresta de uma forma sustentável. Na hora de defender o Xingu, vamos todos juntos”.
Na linha de frente, os povos do Xingu afirmam: “nunca vamos deixar de ser os povos do Xingu, nunca vamos abandonar as nossas terras, queremos deixá-las para nossos filhos e netos. O Xingu é um só”. [Leia o manifesto]
Assista ao vídeo feito pelo cineasta indígena Kamikia Kisedje
Escudo contra a destruição
Nos últimos dez anos 1,2 milhões de hectares foram desmatados na bacia do Xingu. Da destruição de 40% das nascentes do Xingu, na região das cabeceiras do rio, no Mato Grosso, ao barramento do rio para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, próximo à foz, no Pará, a pressão sobre a floresta, os rios e os povos do Xingu colocam em risco uma das regiões mais diversas do mundo. Apenas em agosto deste ano, foram registrados 5.266 focos de queimadas, 345% a mais do que o detectado no mês anterior.
As áreas protegidas, que formam o Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental, se consolidaram como uma barreira à devastação. São 26 milhões de hectares com 21 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação contíguas, conectadas pelo Xingu e seus afluentes.
“O rio Xingu é muito grande mas, para tantas ameaças, pode se tornar pequeno”, alerta Yakuna Ikpeng, professor da aldeia Arayo, no Território Indígena do Xingu (TIX), Mato Grosso.
O TIX enfrenta uma situação dramática. Entre 2007 e 2017, a área de grãos plantada no entorno cresceu 135%, acompanhada pelo uso de agrotóxicos, que aumentou 130% no mesmo período, segundo o IBGE/Sidra. Em 2017, estima-se que entre 60 e 90 milhões de litros de agrotóxico foram usados na porção mato grossense da Bacia do Xingu.
“A soja chegou perto do nosso território, está tudo cercado, é muito agrotóxico, muito perigoso. O veneno cai no rio e contamina os peixes. O futuro é ameaçador”, conta Winti Khĩsêtjê, que vive na TI Wawi, no TIX.
Avanço do garimpo
Só neste ano, 918 quilômetros de estrada associados ao garimpo ilegal foram abertos na TI Kayapó. Desde o começo do ano, 966 hectares foram desmatados no interior da área protegida. Bengoti Kayapó, da Associação Floresta Protegida, mostra no mapa a assustadora proximidade da aldeia e das piscinas cheias de dejetos.
“Tem PC [como são chamadas as retroescavadeiras hidráulicas] perto do cemitério, do lado da aldeia”, aponta Bengoti. “Todos estamos contaminados, de doença que não cura, que vem com o mercúrio”.
O garimpo também ameaça as TIs Menkragnoti, Baú, Trincheira Bacajá, a Resex Riozinho do Anfrísio e outras áreas protegidas da bacia. Os participantes do encontro temem que uma possível flexibilização na legislação termine legalizando o garimpo dentro de Terras Indígenas e agrave ainda mais a pressão sobre o território e a destruição de seus rios.
Floresta no chão
“Eu sou morador da minha terra, minha raiz é lá. Nós não queremos o desmatamento na nossa terra, não queremos não indígenas lá dentro, só nós”, conta Iaut Arara, da TI Cachoeira Seca do Iriri. Desde janeiro foram desmatados mais de mil hectares no interior da área protegida, que carrega o recorde negativo de ser a TI mais desmatada no país nos últimos seis anos.
Tye Parakanã faz coro a Iaut. Ele vive na TI Apyterewa, também localizada no mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio. Apesar de contar com a presença permanente da Força Nacional, menos de 20% da área está sob a inteira posse dos indígenas, segundo a Funai.
“Meu povo é contra as invasões. Desintrusão já!”, pede Tye.
“Queremos nossa terra livre. Se a mata acabar como vamos fazer? Como nossos filhos vão viver?”, questiona Iaut, na plenária do encontro. As lideranças batem palmas e manifestam seu apoio, ao fundo um velho Kayapó diz, em sua língua,“ vamos todos com eles, juntos”.
As TIs Apyterewa e Cachoeira Seca estão na área de influência da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, e um plano de proteção territorial deveria ter sido implementado em 2011, antes da instalação da usina. A construção de bases de proteção e a retirada de ocupantes não indígenas das áreas, parte dessa condicionante, ainda não foram inteiramente implementadas. [Saiba mais]
Produzir sem destruir
Indígenas e ribeirinhos são protagonistas em uma articulação única na bacia do Xingu: a estruturação de uma economia da floresta. Eles levaram seus produtos e experiências para o encontro.
A estruturação das cadeias da castanha, borracha, babaçu, copaíba, pimenta, mel, pequi, sementes, artesanato, entre outros, tem contribuído para a articulação política dessas populações e uma importante alternativa às atividades ilegais. [Saiba mais]
“Produzimos e comercializamos alimentos orgânicos, podemos colocar no mercado e valorizar a saúde de quem está comprando, além da nossa floresta”, atenta Winti Khĩsêtjê.
No começo do ano, o óleo de pequi dos Khĩsêtjê e o óleo de babaçu produzido pelas menire, as mulheres Xikrin da TI Trincheira Bacajá, foram premiados pela ONU. Em 2017, o mel dos índios do Xingu havia vencido o mesmo prêmio.
Deixamos o passado para trás
No último dia do encontro, a cacique Kokoba Menkragnotire pinta o rosto do jovem Pukjora Panará. Representantes de povos historicamente inimigos, esse gesto seria impensável décadas atrás.
“Eu peço para os parentes deixarem o passado pra trás”, fala Doto Takak-Ire, liderança Kayapó, em plenária. Ele se refere às guerras que seu povo travava com outras etnias e ribeirinhos da região. “Antes a gente brigava muito, mas hoje isso não existe mais. Vamos seguir em frente, vamos pensar em um futuro juntos”.